4 de novembro de 2020

Felizes...


"Felizes os que deram tudo.
Felizes os buscadores da paz.
Felizes os que não fugiram, quando perseguidos e injustiçados.
Felizes os que plantaram sempre o pão da justiça
e lutaram contra a germinação da miséria.
Felizes os que acreditaram que só se tem Deus
quando se humaniza a comunidade humana.
Felizes os que humanizam o mundo com a consciência e sem razões religiosas.
A todos estes, Deus há-se escolhê-los
como peregrinos de Emaús."



Manuel António Pina

3 de novembro de 2020

Se...


"Se é possível conservar a juventude
respirando abraçado a um marco do correio;
Se a dentadura postiça se voltou contra a pobre senhora e a mordeu
deixando-a em estado grave;
Se ao descer do avião a Duquesa do Quente
pôs marfim a sorrir;
Se Baú-Cheio tem acções nas minas de esterco;
Se na América um jovem de cem anos
veio de longe ver o Presidente
a cavalo na mãe;
Se um bode recebe o próprio peso em aspirina
e a oferece aos hospitais do seu país;
Se o engenheiro sempre não era engenheiro
e a rapariga ficou com uma engenhoca nos braços;
Se reentrante, protuberante, pertubante, 
Lola domina ainda os portugueses;
Se o Jorge (o «ponto» do Jorge!) tentou beber naquela noite
o presunto de Chaves por uma palhinha
e o Eduardo não lhe ficou atrás
ao sair com a lagosta pela trela;
Se «ninguém me ama porque tenho mau hálito
e reviro os olhos como uma parva»;
Se Mimi Travessuras já não vem a Lisboa
cantar com o Alberto...

...acaso o nosso destino, tac!, vai mudar?"



Alexandre O'Neil
in Poesias Completas

2 de novembro de 2020

Entrei cego na prisão


"Entrei cego na prisão
e saio com os olhos abertos;
entrei mimado, caprichoso, estragado, 
e saio curado de caprichos, manias, presunções;
entrei insatisfeito, 
e saio conhecendo a felicidade;
entrei nervoso, impaciente, ultra-sensível a ninharias,
e saio sereno;
o sol e a vida diziam-me pouco,
mas agora sei apreciar o menor pedacinho de pão;
saio admirando mais do que tudo a coragem, a dignidade, a honra, o heroísmo;
e saio reconciliado:
com aqueles com quem errei,
com os meus amigos e inimigos,
e, ora!: comigo mesmo também!"



Nicolae Steinhardt 

1 de novembro de 2020

Viver é ser outro

"Viver é ser outro.

Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não +e sentir - é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida.

Apagar tudo do quadro de um dia para o outro, ser novo com cada madrugada, revirgindade perpétua da emoção - isto, e só isto, vale a pena ser ou ter, para ser ou ter o que imperfeitamente somos.

Esta madrugada é a primeira do mundo.

Nunca esta cor rosa amarelecendo para branco quente pousou assim na face com que a casaria de oeste encara cheia de olhos vidrados o silêncio que vem na luz crescente.

Nunca houve esta hora, nem esta luz, nem este meu ser.

Amanhã o que foi será outra coisa, e o que eu vir será visto por olhos recompostos, cheios de uma nova visão.

Altos montes da cidade!

Grandes arquiteturas que as encostas íngremes seguram e engrandecem, resvalamentos de edifícios diversamente amontoados, que a luz tece de sombras e queimações - sois hoje, sois porque vos vejo, sois o que [não sereis] amanhã, e amo-vos da amurada como um navio que passa por outro navio e há saudades desconhecidas na passagem."



Fernando Pessoa
in Poemas da Montanha

31 de outubro de 2020

Era uma vez...


"Era uma vez uma estrada, uma carreira,
um curso, um percurso,
que só havia uma maneira de fazer: a correr.
Está-se mesmo a ver, só se iria inscrever
quem não gostasse mesmo nada de perder.

Corria então nessa estrada
um famoso corredor, a transbordar de zelo e de ardor,
indómito lutador. Já se sabia, saía sempre vencedor.

Até que um dia à hora do meio-dia, 
do sol a pique e de Deus na via,
um novo corredor vindo de fora, não se sabe de onde,
agarrava e ultrapassava nessa estrada, o corredor.

A estrada era para os lados de Damasco, 
Paulo o corredor, Jesus o novo vencedor.

Começa aqui outra história de outro amor
com Paulo a correr por dentro e por fora até morrer.

Fora de si, dentro de si, movimento transitivo
no mapa, nos mares, mas estradas, nas cidades, 
movimento intransitivo, 
ao jeito de Abraão, rasgando avenidas no próprio coração.

Mas não quis mais correr sozinho.
Para mim correr é Cristo, 
dizia, e corria agarrado à sua mão.
Uma mão na mão de Cristo, 
a outra apertando a de um irmão
e outro irmão e outro irmão, 
uma verdadeira multidão em comunhão.

É verdade, quando Jesus irrompe na vida de alguém, 
interrompe a normalidade de um percurso, 
e rompe essa vida em duas partes desiguais:
uma que fica para trás,
outra que se abre agora à nossa frente, 
recta como uma seta directa a uma meta, 
a um alvo, um objectivo intenso e claro,
tão intenso e claro que na vida de cada um 
só pode haver um!"



António Couto

30 de outubro de 2020

Do Livro dos Actos dos Apóstolos

"A luz de Damasco é um grito
Para a ovelha que regressa

A luz de Damasco é um tombar de trigo, um cair
Do grão - cega tanto como os olhos
De um homem perseguido quando se volta
Para nós

A luz de Damasco golpeia. É circuncisão
Que abre, limpa, a luz de Damasco
É dura. Da dureza

Das pedras que um mártir junta com as mãos
Com que empedra o caminho para a morte. A luz
De Damasco é esse lume

Da oração de um mártir ao morrer"



Daniel Faria
in Poesia

29 de outubro de 2020

Senhor, Tu falas

"Tu, Senhor, tu falas
e um caminho novo se abre a nossos pés,
uma luz nova em nossos olhos arde,
átrio de luminosidade, 
pão
de trigo e de liberdade,
claridade que se ateia ao coração.
Lume novo, lareira acesa na cidade,
és tu Senhor o clarão da tarde, 
a notícia, a carícia, a ressurreição.

Passa outra vez, Senhor, dá-nos a mão, 
levanta-nos, 
não nos deixes ociosos nas praças, 
sentados à beira dos caminhos,
sonolentos,
desavindos,
a remendar bolsas e redes.
Sacia-nos.
Envia-nos, Senhor, 
E partiremos
o pão, o perdão, 
até que em cada um de nós nasça um irmão."



António Couto