1 de novembro de 2020

Viver é ser outro

"Viver é ser outro.

Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não +e sentir - é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida.

Apagar tudo do quadro de um dia para o outro, ser novo com cada madrugada, revirgindade perpétua da emoção - isto, e só isto, vale a pena ser ou ter, para ser ou ter o que imperfeitamente somos.

Esta madrugada é a primeira do mundo.

Nunca esta cor rosa amarelecendo para branco quente pousou assim na face com que a casaria de oeste encara cheia de olhos vidrados o silêncio que vem na luz crescente.

Nunca houve esta hora, nem esta luz, nem este meu ser.

Amanhã o que foi será outra coisa, e o que eu vir será visto por olhos recompostos, cheios de uma nova visão.

Altos montes da cidade!

Grandes arquiteturas que as encostas íngremes seguram e engrandecem, resvalamentos de edifícios diversamente amontoados, que a luz tece de sombras e queimações - sois hoje, sois porque vos vejo, sois o que [não sereis] amanhã, e amo-vos da amurada como um navio que passa por outro navio e há saudades desconhecidas na passagem."



Fernando Pessoa
in Poemas da Montanha

Sem comentários: