31 de outubro de 2020

Era uma vez...


"Era uma vez uma estrada, uma carreira,
um curso, um percurso,
que só havia uma maneira de fazer: a correr.
Está-se mesmo a ver, só se iria inscrever
quem não gostasse mesmo nada de perder.

Corria então nessa estrada
um famoso corredor, a transbordar de zelo e de ardor,
indómito lutador. Já se sabia, saía sempre vencedor.

Até que um dia à hora do meio-dia, 
do sol a pique e de Deus na via,
um novo corredor vindo de fora, não se sabe de onde,
agarrava e ultrapassava nessa estrada, o corredor.

A estrada era para os lados de Damasco, 
Paulo o corredor, Jesus o novo vencedor.

Começa aqui outra história de outro amor
com Paulo a correr por dentro e por fora até morrer.

Fora de si, dentro de si, movimento transitivo
no mapa, nos mares, mas estradas, nas cidades, 
movimento intransitivo, 
ao jeito de Abraão, rasgando avenidas no próprio coração.

Mas não quis mais correr sozinho.
Para mim correr é Cristo, 
dizia, e corria agarrado à sua mão.
Uma mão na mão de Cristo, 
a outra apertando a de um irmão
e outro irmão e outro irmão, 
uma verdadeira multidão em comunhão.

É verdade, quando Jesus irrompe na vida de alguém, 
interrompe a normalidade de um percurso, 
e rompe essa vida em duas partes desiguais:
uma que fica para trás,
outra que se abre agora à nossa frente, 
recta como uma seta directa a uma meta, 
a um alvo, um objectivo intenso e claro,
tão intenso e claro que na vida de cada um 
só pode haver um!"



António Couto

30 de outubro de 2020

Do Livro dos Actos dos Apóstolos

"A luz de Damasco é um grito
Para a ovelha que regressa

A luz de Damasco é um tombar de trigo, um cair
Do grão - cega tanto como os olhos
De um homem perseguido quando se volta
Para nós

A luz de Damasco golpeia. É circuncisão
Que abre, limpa, a luz de Damasco
É dura. Da dureza

Das pedras que um mártir junta com as mãos
Com que empedra o caminho para a morte. A luz
De Damasco é esse lume

Da oração de um mártir ao morrer"



Daniel Faria
in Poesia

29 de outubro de 2020

Senhor, Tu falas

"Tu, Senhor, tu falas
e um caminho novo se abre a nossos pés,
uma luz nova em nossos olhos arde,
átrio de luminosidade, 
pão
de trigo e de liberdade,
claridade que se ateia ao coração.
Lume novo, lareira acesa na cidade,
és tu Senhor o clarão da tarde, 
a notícia, a carícia, a ressurreição.

Passa outra vez, Senhor, dá-nos a mão, 
levanta-nos, 
não nos deixes ociosos nas praças, 
sentados à beira dos caminhos,
sonolentos,
desavindos,
a remendar bolsas e redes.
Sacia-nos.
Envia-nos, Senhor, 
E partiremos
o pão, o perdão, 
até que em cada um de nós nasça um irmão."



António Couto

28 de outubro de 2020

À maneira de Benamor Lhopes


"A vida não é feita de abrolhos.
É de abr'olhos.

A vida não é de escolhos.
É de escolhas.

Por que me olhas e m'olhas?
Por que me forras a alma
com o relento de um sentimento?

Serei eu a tua escolha?

Abre os olhos e olha,
que eu já me escolhi em ti!"



Alexandre O'Neil
in Poesias Completas

27 de outubro de 2020

Reaprender o espanto


"Precisamos de reencontrar o espanto.

«Espanto» deriva do latino expaventare, que descreve a forte impressão originada por uma coisa inesperada e repentina.
Se procuramos sinónimos, encontraremos «assombro», «admiração», «surpresa».

É o contacto (consciente, fulgurante, desarmado, rendido) com a vida maior do que nós, a vida em aberto, não predeterminada.

No espanto, a nova e surpreendente expressão da vida prende a nossa atenção à maneira de um relâmpago, de um rasgão imprevisível. Não conseguimos encaixá-la no nosso quadro habitual, pois o seu carácter inédito torna inúteis todos os saberes.

Gosto muito da definição de espanto dada por Adorno: «Espanto é um longo e inocente olhar sobre o objeto.»
É, de facto, um «olhar longo», e isso talvez explique porque consideramos hoje tão pouco o espanto, num tempo que nos programa para olhares breves, relances, observações fugidias e utilitárias, cada vez mais simplificadas.
E é um «olhar inocente». isto é, aberto à revelação do próprio objeto, ao que ele pretende de nós e não ao que imediatamente pretendemos dele.

O espanto obriga-nos a uma revisão do que sabemos de nós próprios e do mundo.
Obriga-nos a recomeçar, como se fosse um nascer.
O amor, o conhecimento, a poesia ou a santidade principiam com ele."



José Tolentino Mendonça
in O pequeno caminho das grandes perguntas

26 de outubro de 2020

Um dia todos verão


"Tu és a minha praia.
Quando chego a ti descalço-me primeiro
Ponho-me à vontade.
Nem em minha casa ando descalço
Mas mais que minha casa
Tu és a minha praia.

É em ti que estendo a toalha ao chão
Desisto de me esconder
Conto-te tudo sem nada te dizer.

Tu és bem a minha praia.
Procuro sentir-te de olhos fechados
Como quem ultra vê à flor da pele
E banho-me de sal, de sol, de ti
Meu protector por inteiro."



Paulo Borges

25 de outubro de 2020

Mudança de Hora

"Quando o Amor vier
E já veio
Abre as portas todas
Do invólucro que habitas
E franqueia o Agora no teu seio."



Paulo José Borges

24 de outubro de 2020

Que importa


"Que importa se é tão longe, para mim,
a praia onde tenho de chegar.
Se sobre mim levar constantemente 
poisada a clara luz do teu olhar?

Nem sempre te pedi como hoje peço
para seres a luz que me ilumina;
mas sei que ao fim terei abrigo e acesso
à plenitude da tua luz divina.

Esquece meus passos mal andados,
meu desamor perdoa e meu pecado.
Eu sei que vai raiar a madrugada
e não me deixarás abandonado.
Se tu me dás a mão, não terei medo,
meus passos serão firmes no andar.
Luz terna, suave, leva-me mais longe:
Basta-me um passo para a ti chagar."



Cardeal Newman

23 de outubro de 2020

Esforça-te


"Esforça-te para que saibam que o mundo começou de vez.
Estende uma palavra amável ao transeunte
e o luxo anacrónico de um sorriso.
Àquele que falar mal de ti
perdoa-o com a ternura de falar bem dele.
Segue pela rua não esquecendo nunca 
essa missão dura e difícil que tens pela frente.
Ainda que te esbofeteiem, te espezinhem, te humilhem,
és e serás sempre o profeta do humano,
aquele que anuncia a chegado do mundo novo."



Paulo José Miranda

22 de outubro de 2020

Chamamento


"Como pode tirar de mim
o chamamento
um minuto que seja
apagares a chama?

Por ti eu tiro tudo
e enrodilho
queimando tudo depois à cabeceira

devagar convoco a tempestade aberta
e no meu peito
o coração tropeça

e não há nada que eu queira
imaginar
que entre nós depois
não aconteça"



Frei Agostinho da Cruz
in Poemas da Montanha

21 de outubro de 2020

Então o que é que nos redime?


"Ainda ontem encontrei uma pessoa que veio ter comigo e me disse: «Cheguei a uma encruzilhada do caminho, olho para a minha vida e acho que falhei em toda a linha». E eu respondi-lhe: «Bem-vindo ao clube, meu caro».

O que dá sentido à vida? Não é o que fizemos.

Só um ingénuo fica completamente feliz com aquilo que realizou e não percebe que devia ter feito o triplo, cem vezes mais.

Então o que é que nos redime?

O que é que nos salva?

Cada vez creio mais que é colocarmo-nos, com humildade e confiança, na fronteira de um futuro que seja maior do que nós.

É perceber que somos servos daquele que virá, que o momento mais importante não é este presente apenas, este instante encerrado em si, mas o tempo atravessado pela tensão de um futuro maior.

Não valemos por nós mesmos;
somos qualificados por aquilo que estamos à espera;
medimos a altura do futuro que nos habita.

Somos apenas mediadores: fazemos pequenas coisas, sinalizamos com os nossos gestos aquele que virá.

Quando nos colocamos assim, a vida torna-se outra coisa."



José Tolentino Mendonça
in O pequeno caminho das grandes perguntas

20 de outubro de 2020

Palavras

 Que escutamos no coração. 

A vida vai andando, vamos girando com ela.. e de repente encontramos lembranças de outros tempos que nos fazem ser como somos. 

Vou tentar nos próximos dias, pôr textos com significado!


São palavras que escutamos no coração.. e que nos ficam para a vida!