21 de fevereiro de 2007

como eu vejo

"Finalmente, o telefone. De um salto, Raimundo Silva levantou-se, a cadeira empurrada para trás oscilou e caiu, e ele já ia no corredor, um pouco à frente de alguém que o observava sorrindo com suave ironia. Quem nos diria, meu caro, que tais coisas viriam a acontecer-nos, não, não me respondas, é perda de tempo dar troco a perguntas retóricas, várias vezes falámos disso, vai, vai, eu sigo-te, nunca tenho pressa, o que algum dia tiver de ser teu, meu há-de ser, eu sou sempre aquele que chega depois, vivo cada momento vivido por ti como se de ti respirasse um perfume de rosas apenas guardado na memória, ou, menos poeticamente, o teu prato de hortaliça e feijão branco, onde em cada instante a tua infância renasce, e não o vês, e não quererias acreditar que se fosse preciso dizer-to. Raimundo Silva lançou-se sobre o telefone, num segundo de dúvida pensou, E se não é ela, era ela, Maria Sara, que lhe dizia, Não o devia ter feito, Porquê, perguntou ele, desconcertado, Porque a partir de hoje não poderei não receber rosas todos os dias, Nunca lhe faltarei com elas, Não me refiro a rosas rosas, Então, Ninguém deveria poder dar menos do que deu alguma vez, não se dão rosas hoje para dar deserto amanhã, Não haverá deserto, É só uma promessa, não o sabemos, É verdade, não o sabemos, eu também não sabia que lhe mandaria duas rosas, e você, Maria Sara, por seu lado, não sabe que duas rosas iguais a essas estão aqui, num solitário, sobre a mesa onde há umas folhas escritas com uma história de um cerco que nunca aconteceu, ao lado duma janela que dá para uma cidade que não existe tal qual a vejo (...)"

José Saramago - História do Cerco de Lisboa

1 comentário:

Anónimo disse...

bdia!
como é difícil ser capaz de dar sempre mais do que seu hoje, acordar sempre com aquela vontade de surpreender, de mimar, de amar...
como é difícil renascer depois de uma desilusão, quando alguém nos dá o máximo que tem e no dia a seguir desiste de surpreender...
mas a vida constroi-se assim: com momentos inesperados ou monótonos, surpreendentes ou de rotina, de ansiedade ou desilusão.
é assim que se constroi a vida. é assim que nos construimos dia após dia.
:) obrigada por partilhares este exerto.
bj* com carinho da RuteS;